segunda-feira, 10 de novembro de 2008

d'Ela


Ela
que é parte de mim
que é o ciclo da vida
que é a noite sem fim.
Que é a insônia acordada.
que é o costume em viver
que é o relento na estrada
que é o frio da cama a esvanecer.
que é a filha, mulher e minha mãe

E mãe, meu caro, mãe não tem rima.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A primeira récita de Segunda

Não se espera que as coisas de final de semana aconteçam logo na Segunda. Em São Paulo, se fosse Sexta, ou até Quinta, tudo bem. Mas Segunda é um dia aculturado, mecanizado.

Segunda passada, porém, deparei-me com uma récita na Praça Roosevelt. Era a semana de aniversário da loja de história em quadrinhos de mais renome da cidade, quiçá do país. Eles tinham organizado alguns eventos para a comemoração. Mesmo assim, segunda-feira...?

Quem conhece a Praça Roosevelt, sabe que por ali passam os jovens alternativos da cidade. Entretanto, as figuras que vi naquela noite destoavam do público comum. De longe, até parecia ser um grupo enlutado pela morte de um conhecido, de tão velhos que eram. Mas, aproximando-se, notar-se-ia que estavam radiantes. Compunham uma roda de récita.

Uma récita formada por velhos ou uma récita de segunda-feira - aquela que não aparece ninguém, só zumbis desacreditados, eventualmente? Quis checar.

O primeiro a entoar era um senhor de barba amarela e sandálias gastas. Falava baixo e com a rouquidão dos anos, mas era disposto, e tinha olhar. Seu Castelo - como soube depois - recitou um par de poemas bem estruturados, daqueles de conteúdo que valha a pena e ritmo adequado. Como ele, outros colegas talentosos continuaram. E tudo isso para a minha surpresa de menina convencida.

Envergonhei-me. Lá estava um homem, velho, sim, com a sua catarata, que falava de amor e de liberdade com muito mais propriedade que eu. Ele sentia, pois para escrevinhar é preciso sentir. Sentia profundo, de um modo que eu, superficial que sou no mundo, não posso mergulhar.

Abandono desde já minhas classificações dos dias de semana. Há outros assuntos para se tratar. 

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

(auto)Análise Social


Aula de Sociologia.

O professor, jogado na cadeira e com o queixo apoiado na mão, sussurrava para as paredes pelo microfone.

Os alunos se ocupavam com diversas atividades: comentários sobre a última festa, leitura de textos de outras matérias, desenhos, sonhos com os olhos abertos... Eu mesma não era exceção: escrevia um pedaço de poesia. Em meio à impaciência de não encontrar a palavra perfeita, permiti-me ouvir o que aquela face escondida por detrás dos cabelos oleosos tinha a dizer.

O tema era suicídio, o fato e o livro de Emilè Durkheim. Capitei o catedrático da cadeira de Sociologia no momento em que relatava os suicídios ocorridos quando um cometa passou perto do planeta. Os falecidos daquele dia fatídico acreditavam que seriam levados pelo cometa para outro lugar.

A declaração do professor prendeu minha atenção de uma maneira peculiar: eu deveria ouvi-la.

- É aquela crença de quem, em algum lugar, há uma vida diferente – ou melhor- que esta...

Seu olhar perdeu-se na sala. Suas rugas pareceram-me mais cansadas, seu terno, ainda mais velho. Tive pena daquele ser humano. Soube, naquele instante, que ele já quisera se matar. Diferentemente de muitos cientistas sociais, ele sabia do que estava falando.

 

 

Esse texto tem algumas mentiras, mas muitas verdades. Sendo assim, decidi pela tag "vida".

segunda-feira, 28 de julho de 2008

“And now, for something completely different”¹



Quarta. Por deus, quem comemora o aniversário na quarta-feira? Não numa cidade grande, onde todos trabalham e estão presos no trânsito e nas suas correntes de deveres diários.

Minha mãe se aproveitou da situação marcando a janta logo hoje. Aposentada, cantarola ao ritmo da colher de pau. Panelas ao fogo às quatro da tarde... Ah! Ser aposentada tem suas vantagens, ô se tem!

Ela sorri para mim e seu pé-de-galinha é pressionado. Sim, prefiro estar aqui devido à folga no trabalho. Também tem desvantagens em ser aposentada: é necessário ser velha, na maioria dos casos.

Meu irmão telefona avisando que a Jane vai se atrasar, mas que virá. Minha mãe, muito fina: “Ah, vá à merda. É hoje que faço 70, e é hoje que farei a reunião. Vem quem quer. Quem não quiser, que não venha.”. Ela diz isso como se “merda” conotasse sinceridade. Mas ela sabe, eu sei que sabe, que família também cria deveres, e que, por mais que todos tenham compromissos, agradar a mãe ou a sogra também é um compromisso. Só mais outro grilhão cotidiano...

“Ele disse que a Jane vem...”, ela comenta, após desligar, como quem não quer nada. “Toma, experimenta”. Eu pergunto o que é. Sei que ela não vai dizer. Ela nunca fala sobre sua comida até que esta tenha passado pela língua de todos os presentes. Era um creme bege; provei.

ALHO. Mãe, patê de alho e você me dá uma colher de sopa inteira para comer, e puro? Quero ver esse gosto horrível sair da minha garganta.

Ela me sorri da sua maneira irresistível: um sorriso carregado de sabedoria, com uma pitada de ingenuidade... ou talvez a ingênua seja eu: se trata de descaso.

Toda vez que ela sorri para mim, minha mente é tomada pela idéia de que, se ela não se importa, por que eu deveria? Por isso que começo a pensar que faz sentido os vampiros serem repelidos por alho. Afinal, são criaturas que vivem para delicados prazeres, só. Aliás, não vivem, existem...

Quem vive é essa viúva aqui na minha frente, que cozinha tendo como base uma receita que não segue. Vida: algo totalmente diferente.

¹ frase tirada de Monthy Phyton Flying Circus.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

João Botas-de-cemitério


João botas-de-cemitério é o meu marido. Eu o amo tanto. Amo a maneira como suas sobrancelhas se ajuntam quando ele está perplexo, ou como suas mãos fortes seguram a pá, fazendo seus bíceps saltarem. Sinto carinho por ele quando se lava, esfregando desajeitadamente suas pernas sujas de terra, quase não cabendo no nosso box. Amo também quando corre olhando para baixo, voltando para casa para assistir à partida de futebol. Admiro-o pela sua força de vontade de sair da cama que eu esquento para ir trabalhar logo pela matina. Mas, nessa hora, a verdade é que sinto um alívio. É verdade que eu o amo, mas quando ele chega perto, eu sinto cheiro de morto. Depois passa, mas aí, quando eu o abraço, imagino se ele antes não agarrou um defunto para o colocar no caixão. E pior: quando transamos, eu imagino se ele não se sente atraído pelas mulheres mortas que acaba vendo peladas. Será que ele não as imagina? Acho que ele me ama, sim. Não tem mais ninguém além de mim. Mas às vezes penso que ele me quer como as defuntas: quieta e subordinada.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Camenae


Por que é tão difícil escrever sobre mim mesma? Até quando vou falar do que eu sinto, crio personagens, diversos de mim, e no desfecho lhes dou um final que não será o meu.

Eu os mato, eu faço ironia com a situação deles... Mas não é como se me debochasse, porque me sinto fora, fora da história. Fora de estórias.

O que está em jogo não é o fato de eu ser ou não escarnecida pelos meus finais. Mas é de eu ter um final, e assim, conseqüentemente, um começo. Tenho, porém, dificuldade de traçar essas linhas, esses horizontes.

Quando foi que eu comecei? Lembro de mim eternamente, não me recordo de quando apareci. Por mais que digam que nasci abrindo a primavera chuvosa de ’90, para mim eu nunca nasci. Desde quando meus olhos puderam ver, minhas mãos tomaram coordenação e eu tomei consciência de mim mesma, eu já estava lá.

Eu não me lembro de ter nascido. Não me lembro da placenta, nem de ser semente, nem de nada ser. Eu me lembro de ser sempre, sempre estar aqui, comigo.

[sussurro] Eu sou eterna.

E eu sou mais eterna porque não estarei presente no momento da minha morte. Dizem que isso não é possível? Pois bem, eu não estarei presente no momento da minha morte!

Posso até vir a sofrer de doença, de velhice, de acidente, de homicídio. Mas, se alguém disse “Ela morreu!”, eu não estarei lá... Não mais! Eu estarei morta.

Eu não presenciarei o momento da minha morte simplesmente porque serei a atriz principal. Para isso, eu precisarei morrer, e deixar de estar presente... Para os outros.

Porém, para mim, eu sempre estarei aqui, porque meus sentidos nunca saberão o que é a minha ausência.

Eu sou eterna.

terça-feira, 25 de março de 2008

Homem utópico


Johnny, o cientista. Em seus relatórios sobre o complexo de Golgi, faz poesia, tão belos são os vocábulos, tão profundas são as reflexões metafísicas.
Passa noites em claro, com a pilha de livros, cujo topo pertence à Augusto dos Anjos, e a base, à Baudelaire, ao seu lado, escrevendo teses que depois farão sua instrutora de Biologia perder os cabelos, ou de paixão tresloucada ou de raiva pela quebra do padrão científico. Mal ela suspeita o que aquele galanteador trama na penumbra da matina...
Sissy, a gata siamesa perfeitamente escovada, acaricia os pés de nosso galã. Ele fita-a e pensa no sistema digestório felino e, ao mesmo tempo, a música de Al Stewart, "The Year of the Cat", lampeja em sua mente.
Oh! Homem completo! Para que assim seja, só resta um problema de álgebra booleana! Só lhe falta analisar a face do animal como uma proporção precisa tal qual a dada por uma matriz.
A campainha toca, interrompendo a cena magestosa.
Johnny levanta-se e dá ao entregador de pizza que jaz parado em sua soleira exatamente o valor e vinte e oito reais e quarente centavos.
- Senhor. O refrigerante custa 3,20 e a pizza, 24,50. São 27,70, meu senhor.
Tudo desfaleceu naquela fração de segundos que pareceu milênios. Sissy soltou um miado dramático e saiu pela janela.
Afinal, não poderia ser tão perfeito...

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Trajeto passivo

Meus pés estão numa rua,
Alinhados às diversas de oportunidades,
Essas, milhares de sussurros uníssonos
Soando em meu ouvido,
Equilibradas, todas,
Pela minha ambição de tudo.

E a balança não pende,
E escolhas não são feitas.
A existência, porém, leva-me,
Já o tempo carcomido, embrulha o vazio
Com um papel-de-presente chamado esperança.

Atravesso a rua, cumprimentando cada possibilidade...
Probabilidades infinitas, essa minha vida,
Mega-Sena sorteada,
Como eleição unânime dos Deuses.

Sou simpática a todas elas,
Acaricio o seu potencial,
Massageio seu ego,
“Vir-a-ser”, “futuro”, etc, etc.
Ser política com as próprias decisões!

Em meio ao grande mundo,
Amanhã metafísico,
Não me posiciono por,
Puramente, medo.

Tremo – calafrio –
Ao pensar que cada opção,
Concomitantemente, será uma perda,
Uma, não.
Todas as outras.

No final da realidade,
Contemplarei a areia sob esses pés,
Pois a rua extinguiu-se, virou praia,
E a praia dá para um mar eterno de afogamento eterno.

Areia fofa, porque nada construí, pendi.
O cimento é para os fortes.
Areia morna, porque o sol brilhou
E eu não vi as portas se fecharem, no escuro.

Agora não há meios.
Os olhos se enclausuraram em água salgada.


Opiniões críticas são importantes para mim, principalmente quando se trata de poesia! Dê a sua, se tiver!

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O Médico e o Legista

Contos não imaginados até o fim V

O médico e o legista. Vizinhos de muro, colegas de cordiais “bom dia”s.

Cidade pequena... Sabiam muito um da vida do outro. Suas esposas eram amigas – era possível vê-las voltando a pé da igreja aos domingos, a parolar.

Certo dia, um domingo, ambos esperavam as mulheres na soleira da porta : o médico colocava alpiste para o canário belga; o legista a fumar seu charuto. Cumprimentaram-se, sorriram, e então o silêncio começou a incomodar aqueles dois cidadãos muito polidos. Resolveram quebrá-lo com palavras óbvias.

- A sua esposa também foi à missa? – começou o médico.

- Ah, sim. Vai praticamente todo domingo. A sua também, não?

- Sim. Olhe lá, as duas! – e vinham juntas as mulheres

-Marie fala muito da dedicação de sua mulher à igreja.

- Engraçado... Julie comenta sofre a grande fé de Marie.

- É, de fato. Marie coloca no altar o nome de todos os mortos que examino, e reza para cada um deles ter um bom destino.

- Interessante. Julie também reza para os meus pacientes, para que sobrevivam.

As mulheres chegaram e não mais se tocou no assunto.

Tanto o médico quanto o legista não acreditavam nas rezas de suas esposas. Um perdera muito enfermos inocentes e de bom coração, e outro já examinara cadáveres de bandidos que certamente não iam para o Céu, se esse existir.




A série "Contos não imaginados até o fim" não começou nesse blog, e espero que nem aqui termine. Esta coleção-botão, composta por contos-relâmpago, fará 1 ano em março, e como comemoração, posto sua quinta parte.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Primeiro prêmio

Fui surpreendida pelo Amnésico ao receber dele o Prêmio Escritores da Liberdade. Eis a descrição do selo, criado pelo blog Batom Cor de Rosa:

“Todos temos blogs pelo fato de gostarmos de escrever. Por prazer, profissionalismo, ou qualquer motivo pessoal.
E a maioria gosta de escrever para liberar algum sentimento profundo, seja ele bom ou ruim. Escreve para se encontrar, para analisar a situação depois de algum tempo, ou naquela mesma hora, e também por essa paixão de pôr tudo no "papel".
E estou chamando esses blogueiros de Escritores da própria liberdade.
Escritores sim, mesmo que amadores, que escrevem suas emoções, que não guardam tudo para sí. Que compartilham tudo com pessoas muitas vezes estranhas(entre as conhecidas)... Escritores que admiro muito, por vários motivos, que se destacam de um jeito único, para cada uma das pessoas que os conhecem. Blogueiros que publicam a sua liberdade de expressão.
Estou passando esse selo para 5 blogs que leio muito, que gosto muito.
E isso não significa que eu desconsidere os outros.
Vocês conhecem o "sistema". Passe adiante para outros 5 blogs amigos, copiem esse texto se quiserem, parabéns, escritores da Liberdade! =)”


Meus indicados:

1. Menáge a Trois
2. Veja o que eu vi
3. A Vida Escrita a Mão
4. Midialismo
5. Bobalona

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Comercial

Na mixórdia de gente perambulando a 25 de março, três figuras se destacavam: um moleque, uns 14 anos, talhando o poste de luz com uma faca “butterfly” como quem não tem nada melhor para fazer; um velho magrelo, falando pela boca de dentes pútridos; e, finalmente, uma menina, 15 anos aparentemente, vestida como mulher adulta, ouvindo indignada.

- Mas, meu senhor! Eu entendo a sua posição, mas é que se trata de uma rua, lugar público! Não pode me tirar daqui, não estou fazendo nada.

- Boneca, - o velho cuspiu na sarjeta – todos nós sabemos o que você está fazendo aqui. E é tão ilegal quanto mandar alguém inocente embora de uma rua pública. Não queira arrumar confusão... Isso aqui é a rua comercial mais importante do centro, e essa é a calçada da MINHA loja.

- Ora, deixa eu ficar, vai? Só o senhor reparou em mim, nem estou atrapalhando!

- Opa, opa. Eu reparei em você. – Pelezinho, o moleque, parou o que estava fazendo para lançar um olhar tanto pervertido quanto perverso.

- Cala a boca, Pelezinho. Isso é entre eu e a moça aqui. – e o velho colocou seu braço sobre o ombro dela.

- Sem querer ofender, Seu Barros, mas ela poderia ser sua neta... Tem quantos anos? O mesmo que eu, aposto. E o senhor tem neto até mais velho que eu!

- Muito engraçado, muito! Você, quando chegar na minha idade, vai entender que a vida só está começando! – virou-se para a menina – A belezura está cobrando quanto? Eu pago!

- Vinte reais, duas horas. Quinze, se o senhor deixar eu fazer o ponto aqui.

- Ótimo. Agora chispa, moleque!

(...)

- Pronto, agora que ele se foi, vamos à farmácia para comprar o santo medicamento.

-... o senhor vai mesmo deixar eu fazer ponto aqui, né?

- É, é... Agora, vamos.



(créditos para a imagem, foto da capa de "Valentina 67-68" de Guido Crepax)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

De volta a caverna

O tempo em que lia, absorta e com atenção,
As palavras metafísicas do velho Sócrates
Diluiu-se, exauriu-se numa bruma,
Que jamais encontrará tal coesão.

É que adoeci lá fora.
O ermo, a vastidão inútil
Além da fachada cavernosa foram cancros
Que deixaram na alma sulco nada sutil.

Nunca mais suportarei igual solidão!
A rútila luz das estrelas conheceu
A minha loucura, a minha atroz vertigem,
Momento no qual me perdi tal flâmula em tufão.

Não mais busco a caduca sapiência;
Passei a ser lascivamente pervertida,
A entregar-me a doença fervorosa do amor.
Tornei-me sádica perante a vida em decadência,
Minhas gargalhadas fizeram dela uma comédia.

Adeus, pétrea razão! Adeus, acre solidão!
Apraz-me adentrar a alcova
E, após beber do vinho ambrosia,
Participar, com os homens presos em grilhão,
Da mais ensurdecedora e fremente orgia!

domingo, 20 de janeiro de 2008

Chuá

O chuveiro era um barulho estridente, em contraste com o silêncio que rompia.

Hoje, nada de rock anos 70 como música-tema para o banho. Ela escolhera quebrar tal rotina, e agora estranhava. Inspirou profundamente, não como reflexo da água fria que batia em seus ombros, mas para certificar-se de que o som da ducha não era tão poderoso. Não mais que ela.

Pois ela era a rainha daquele reino banheiro. Uma rainha sem súditos, mas com muitos serventes. Desde o batom vermelho escarlate até a bucha vegetal que pressionava violentamente contra a pele.

Era a protagonista naquele palco banheiro. Suas peças eram de um maniqueísmo bizarro e claramente territorial. A boa personagem aparecia na região da pia, quando ela se maquiava defronte o espelho, ou passava cremes em suas coxas de heroína, exercitadas que eram. Quanto à personagem má, esta surgia na privada – trono da rainha malévola – atuando em cenas de vômito, por excesso de bebida ou momentos pré-aborto, ou em monólogos trágicos, em que ela se sentava na tampa do vaso e batia com força a cabeça na descarga, soluçando.

Mas aquele seria um dia especial. Faria um papel improvisado, inédito.

Enquanto se lavava, tropeçou no piso solto, cortando o pé. A cabeça encontrou a beirada do vaso sanitário e o casamento foi instantâneo: não é que a cabeça estava perdendo a virgindade!

Ela era a finada daquele caixão banheiro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Cuca

Num sábado comum, num almoço em família nada peculiar, eu me senti superior a uma pessoa.

Estava lendo, naquela época, um livro, “O menino do pijama listrado”, de John Boyne, que narra a amizade de um filho de oficial nazista comum judeu de um campo de concentração sob a ótica do primeiro. Impulsionada pela lembrança de Hitler, analisei criticamente o meu sentimento.

Hitler acreditava na existência de uma raça superior e, por conseqüência, em outras, inferiores. Nisso eu me salvei de autocrítica, por acreditar que a importância da descendência para a formação de um ser pensante é ínfima. Com isso, não nego os genes, mas valorizo muito mais a cultura, a criação e os fatos vividos na constituição de uma pessoa.

Porém, Hitler se colocava como o superior. Isso, apesar de por razões diferentes, eu também fiz naquele dia.

A conversa do almoço rumara para o incidente do furto dos quadros no Museu de Arte de São Paulo. De repente, deparei-me com minha tia dissertando, com palavras rudes e com o nariz em pé (só faltando o dedo em riste, subentendido), sobre os quadros que ela julgava horríveis. Disse que não entendia como poderiam coisas tão feias e inúteis ter valor tão alto. Também não compreendia como tantas pessoas poderiam valorizá-las. Foi aí que, boquiaberta, eu a coloquei, inconscientemente, num degrau abaixo do meu.

O que contra-argumentei depois dessa declaração me pareceu tão óbvio que me sentia infantil ao dizê-lo. Falei que arte não tinha mesmo um objetivo além do de ser arte, e isso permitia maior liberdade de expressão ao artista, para criar (e aqui, fecha-se o triângulo de causas e conseqüências) arte. Falei que a beleza é um valor subjetivo que, além de variar de pessoa para pessoa, também varia na história. Citei também o fato de artistas serem consagrados, muitas vezes, pela coletânea de suas obras, e não por apenas uma delas - mas é claro que cada pedaço participa do seu todo. Comentei sobre a regra básica da economia, a lei da oferta e procura.

Refletindo melhor, e com certa distância da cena, vejo que me senti superior por ter como bagagem algumas reflexões sobre coisas cotidianas. Não que estejam certas ou erradas, ou prontas para se vender por aí, mas elas foram construídas com uma base racional, e não uma base subjetiva de impulsos opinativos e instintivos.

Acho que não consigo não me sentir superior por usar o que me faz humana: a minha cabeça.

Pessoas com problemas mentais dão, muitas vezes, o seu melhor para poderem se comunicar com palavras e fazerem silogismos categóricos. Mas minha tia preferiu tomar um café e esquecer a discussão, dando férias aos neurônios e tchau ao seu potencial.

Foi então que saí da mesa de um sábado comum.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Valor


De que valem todas as horas abraçadas ao telefone, se ele só tocou quando eu estava em sono profundo?
De que vale o sacrifício suado dentro do ônibus, se o motor enguiçou e não cheguei a tempo?
Qual o valor de todas as checadas de e-mail, se não chegou um sequer?
E as cartas... Todas as cartas escritas e extraviadas, e jogadas no lixo ou torradas em brasa de raiva...
O presente que embrulhei com carinho e ficou no meu armário...
As surpresas que sonhei, com nenhum intuito além do natural, puro e sincero surpreender...
As flores que pensei em plantar, para colher em dias especiais...

Nada. Não passaram de utopia, de improbabilidade...

Mas não para mim. O que me fortaleceu foram os meus desejos. Eles me dão a certeza de que tenho certeza do que quero, de que o que eu planejo tem sentido e fim, apesar de muitas vezes o mundo, e você - que é meu ponto final - dizerem o contrário.


(a raiva que às vezes tenho do meu namorado é muito inspiradora. Mas ela é passageira, pois eu o amo tanto :3

Sobre as fotos, a maioria é de minha autoria. São exceções as que acompanham os post "Mudança de Nome" e "Vaidade de Ed". )

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Um conto de Natal


Como Bonifácio odiava o Natal. Toda uma utopia enfeitada de luzinhas sugadoras de eletricidade, de coníferas importadas de países nórdicos. Pura hipocrisia.

O chefe que o tratava como um verme durante o ano todo tinha a cara de pau de dar, nessa época, aquele típico tapinha nas costas, entregando o vinho barato e a cesta que estava na promoção no Carrefour, duas quadras para lá da firma. O pior: saber que não tinha dinheiro para comprar aquilo para si. Se não fosse pelo patrão, nem ceia teria. Isso o enraivecia mais ainda.

No dia 23, chegou tarde do trabalho e ainda se deparou com um sorriso do porteiro, perguntando se receberia uma contribuição. Xingou-o, porém jogou algumas notas na guarita, que caíram no chão e não foram pegas antes dele sumir pelo corredor, preferindo as escadas ao elevador. Mais difícil encontrar alguém pelas escadas...

Respirou fundo ao entrar no apartamento de dois cômodos. Finalmente paz e solidão! Alargou a gravata surrada, de listras bregas; jogou a pasta no chão e acendeu um cigarro. Estava abrindo a janela para não empestear a casa com fumaça, porém fechou-a com um baque. O vizinho pianista deixava “jingle bells, jingle bells...” ressonarem até seu reduto.

O aconchego que sua casa lhe dera há um minuto atrás sumira. Estava paranóico. Precisava fazer com que aqueles dias de Natal se transformassem em dias comuns.

A tarefa seria muito mais difícil sem repetitivo trabalho cotidiano. A única alternativa seria imaginar que 24 e 25 de dezembro eram como finais de semana. Abriu o armário de bebidas e ligou para sua prostituta favorita. Duas horas depois e ela tocou a campainha.

Bonifácio morreu naquele dia, de parada cardíaca. Era fumante, com início de alcoolismo e conhecido por seus nervosismos de fim de ano. Se sua mãe estivesse viva, amenizaria a perplexidade das pessoas perante essa estranheza contando que ele fora molestado pelo “Papai Noel” do shopping. Até o dia do falecimento, ela lamentava por tê-lo obrigado a sentar-se no colo do “bom” velhinho todo ano.

A ambulância, ao atender ao chamado daquela noite, deparou-se com um corpo no chão e uma moça chorando, assustada. Ela, que vestia uma saia e um top muito curtos, ambos vermelhos e com pelugem branca, como o gorro, relatou que o morto pôs a mão no peito e caiu assim que abriu a porta. Seus clientes costumavam gostar daquela roupa naquele período do ano...

Bonifácio fora, pelo jeito, uma exceção.