quinta-feira, 10 de abril de 2008

Camenae


Por que é tão difícil escrever sobre mim mesma? Até quando vou falar do que eu sinto, crio personagens, diversos de mim, e no desfecho lhes dou um final que não será o meu.

Eu os mato, eu faço ironia com a situação deles... Mas não é como se me debochasse, porque me sinto fora, fora da história. Fora de estórias.

O que está em jogo não é o fato de eu ser ou não escarnecida pelos meus finais. Mas é de eu ter um final, e assim, conseqüentemente, um começo. Tenho, porém, dificuldade de traçar essas linhas, esses horizontes.

Quando foi que eu comecei? Lembro de mim eternamente, não me recordo de quando apareci. Por mais que digam que nasci abrindo a primavera chuvosa de ’90, para mim eu nunca nasci. Desde quando meus olhos puderam ver, minhas mãos tomaram coordenação e eu tomei consciência de mim mesma, eu já estava lá.

Eu não me lembro de ter nascido. Não me lembro da placenta, nem de ser semente, nem de nada ser. Eu me lembro de ser sempre, sempre estar aqui, comigo.

[sussurro] Eu sou eterna.

E eu sou mais eterna porque não estarei presente no momento da minha morte. Dizem que isso não é possível? Pois bem, eu não estarei presente no momento da minha morte!

Posso até vir a sofrer de doença, de velhice, de acidente, de homicídio. Mas, se alguém disse “Ela morreu!”, eu não estarei lá... Não mais! Eu estarei morta.

Eu não presenciarei o momento da minha morte simplesmente porque serei a atriz principal. Para isso, eu precisarei morrer, e deixar de estar presente... Para os outros.

Porém, para mim, eu sempre estarei aqui, porque meus sentidos nunca saberão o que é a minha ausência.

Eu sou eterna.

terça-feira, 25 de março de 2008

Homem utópico


Johnny, o cientista. Em seus relatórios sobre o complexo de Golgi, faz poesia, tão belos são os vocábulos, tão profundas são as reflexões metafísicas.
Passa noites em claro, com a pilha de livros, cujo topo pertence à Augusto dos Anjos, e a base, à Baudelaire, ao seu lado, escrevendo teses que depois farão sua instrutora de Biologia perder os cabelos, ou de paixão tresloucada ou de raiva pela quebra do padrão científico. Mal ela suspeita o que aquele galanteador trama na penumbra da matina...
Sissy, a gata siamesa perfeitamente escovada, acaricia os pés de nosso galã. Ele fita-a e pensa no sistema digestório felino e, ao mesmo tempo, a música de Al Stewart, "The Year of the Cat", lampeja em sua mente.
Oh! Homem completo! Para que assim seja, só resta um problema de álgebra booleana! Só lhe falta analisar a face do animal como uma proporção precisa tal qual a dada por uma matriz.
A campainha toca, interrompendo a cena magestosa.
Johnny levanta-se e dá ao entregador de pizza que jaz parado em sua soleira exatamente o valor e vinte e oito reais e quarente centavos.
- Senhor. O refrigerante custa 3,20 e a pizza, 24,50. São 27,70, meu senhor.
Tudo desfaleceu naquela fração de segundos que pareceu milênios. Sissy soltou um miado dramático e saiu pela janela.
Afinal, não poderia ser tão perfeito...

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Trajeto passivo

Meus pés estão numa rua,
Alinhados às diversas de oportunidades,
Essas, milhares de sussurros uníssonos
Soando em meu ouvido,
Equilibradas, todas,
Pela minha ambição de tudo.

E a balança não pende,
E escolhas não são feitas.
A existência, porém, leva-me,
Já o tempo carcomido, embrulha o vazio
Com um papel-de-presente chamado esperança.

Atravesso a rua, cumprimentando cada possibilidade...
Probabilidades infinitas, essa minha vida,
Mega-Sena sorteada,
Como eleição unânime dos Deuses.

Sou simpática a todas elas,
Acaricio o seu potencial,
Massageio seu ego,
“Vir-a-ser”, “futuro”, etc, etc.
Ser política com as próprias decisões!

Em meio ao grande mundo,
Amanhã metafísico,
Não me posiciono por,
Puramente, medo.

Tremo – calafrio –
Ao pensar que cada opção,
Concomitantemente, será uma perda,
Uma, não.
Todas as outras.

No final da realidade,
Contemplarei a areia sob esses pés,
Pois a rua extinguiu-se, virou praia,
E a praia dá para um mar eterno de afogamento eterno.

Areia fofa, porque nada construí, pendi.
O cimento é para os fortes.
Areia morna, porque o sol brilhou
E eu não vi as portas se fecharem, no escuro.

Agora não há meios.
Os olhos se enclausuraram em água salgada.


Opiniões críticas são importantes para mim, principalmente quando se trata de poesia! Dê a sua, se tiver!

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O Médico e o Legista

Contos não imaginados até o fim V

O médico e o legista. Vizinhos de muro, colegas de cordiais “bom dia”s.

Cidade pequena... Sabiam muito um da vida do outro. Suas esposas eram amigas – era possível vê-las voltando a pé da igreja aos domingos, a parolar.

Certo dia, um domingo, ambos esperavam as mulheres na soleira da porta : o médico colocava alpiste para o canário belga; o legista a fumar seu charuto. Cumprimentaram-se, sorriram, e então o silêncio começou a incomodar aqueles dois cidadãos muito polidos. Resolveram quebrá-lo com palavras óbvias.

- A sua esposa também foi à missa? – começou o médico.

- Ah, sim. Vai praticamente todo domingo. A sua também, não?

- Sim. Olhe lá, as duas! – e vinham juntas as mulheres

-Marie fala muito da dedicação de sua mulher à igreja.

- Engraçado... Julie comenta sofre a grande fé de Marie.

- É, de fato. Marie coloca no altar o nome de todos os mortos que examino, e reza para cada um deles ter um bom destino.

- Interessante. Julie também reza para os meus pacientes, para que sobrevivam.

As mulheres chegaram e não mais se tocou no assunto.

Tanto o médico quanto o legista não acreditavam nas rezas de suas esposas. Um perdera muito enfermos inocentes e de bom coração, e outro já examinara cadáveres de bandidos que certamente não iam para o Céu, se esse existir.




A série "Contos não imaginados até o fim" não começou nesse blog, e espero que nem aqui termine. Esta coleção-botão, composta por contos-relâmpago, fará 1 ano em março, e como comemoração, posto sua quinta parte.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Primeiro prêmio

Fui surpreendida pelo Amnésico ao receber dele o Prêmio Escritores da Liberdade. Eis a descrição do selo, criado pelo blog Batom Cor de Rosa:

“Todos temos blogs pelo fato de gostarmos de escrever. Por prazer, profissionalismo, ou qualquer motivo pessoal.
E a maioria gosta de escrever para liberar algum sentimento profundo, seja ele bom ou ruim. Escreve para se encontrar, para analisar a situação depois de algum tempo, ou naquela mesma hora, e também por essa paixão de pôr tudo no "papel".
E estou chamando esses blogueiros de Escritores da própria liberdade.
Escritores sim, mesmo que amadores, que escrevem suas emoções, que não guardam tudo para sí. Que compartilham tudo com pessoas muitas vezes estranhas(entre as conhecidas)... Escritores que admiro muito, por vários motivos, que se destacam de um jeito único, para cada uma das pessoas que os conhecem. Blogueiros que publicam a sua liberdade de expressão.
Estou passando esse selo para 5 blogs que leio muito, que gosto muito.
E isso não significa que eu desconsidere os outros.
Vocês conhecem o "sistema". Passe adiante para outros 5 blogs amigos, copiem esse texto se quiserem, parabéns, escritores da Liberdade! =)”


Meus indicados:

1. Menáge a Trois
2. Veja o que eu vi
3. A Vida Escrita a Mão
4. Midialismo
5. Bobalona

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Comercial

Na mixórdia de gente perambulando a 25 de março, três figuras se destacavam: um moleque, uns 14 anos, talhando o poste de luz com uma faca “butterfly” como quem não tem nada melhor para fazer; um velho magrelo, falando pela boca de dentes pútridos; e, finalmente, uma menina, 15 anos aparentemente, vestida como mulher adulta, ouvindo indignada.

- Mas, meu senhor! Eu entendo a sua posição, mas é que se trata de uma rua, lugar público! Não pode me tirar daqui, não estou fazendo nada.

- Boneca, - o velho cuspiu na sarjeta – todos nós sabemos o que você está fazendo aqui. E é tão ilegal quanto mandar alguém inocente embora de uma rua pública. Não queira arrumar confusão... Isso aqui é a rua comercial mais importante do centro, e essa é a calçada da MINHA loja.

- Ora, deixa eu ficar, vai? Só o senhor reparou em mim, nem estou atrapalhando!

- Opa, opa. Eu reparei em você. – Pelezinho, o moleque, parou o que estava fazendo para lançar um olhar tanto pervertido quanto perverso.

- Cala a boca, Pelezinho. Isso é entre eu e a moça aqui. – e o velho colocou seu braço sobre o ombro dela.

- Sem querer ofender, Seu Barros, mas ela poderia ser sua neta... Tem quantos anos? O mesmo que eu, aposto. E o senhor tem neto até mais velho que eu!

- Muito engraçado, muito! Você, quando chegar na minha idade, vai entender que a vida só está começando! – virou-se para a menina – A belezura está cobrando quanto? Eu pago!

- Vinte reais, duas horas. Quinze, se o senhor deixar eu fazer o ponto aqui.

- Ótimo. Agora chispa, moleque!

(...)

- Pronto, agora que ele se foi, vamos à farmácia para comprar o santo medicamento.

-... o senhor vai mesmo deixar eu fazer ponto aqui, né?

- É, é... Agora, vamos.



(créditos para a imagem, foto da capa de "Valentina 67-68" de Guido Crepax)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

De volta a caverna

O tempo em que lia, absorta e com atenção,
As palavras metafísicas do velho Sócrates
Diluiu-se, exauriu-se numa bruma,
Que jamais encontrará tal coesão.

É que adoeci lá fora.
O ermo, a vastidão inútil
Além da fachada cavernosa foram cancros
Que deixaram na alma sulco nada sutil.

Nunca mais suportarei igual solidão!
A rútila luz das estrelas conheceu
A minha loucura, a minha atroz vertigem,
Momento no qual me perdi tal flâmula em tufão.

Não mais busco a caduca sapiência;
Passei a ser lascivamente pervertida,
A entregar-me a doença fervorosa do amor.
Tornei-me sádica perante a vida em decadência,
Minhas gargalhadas fizeram dela uma comédia.

Adeus, pétrea razão! Adeus, acre solidão!
Apraz-me adentrar a alcova
E, após beber do vinho ambrosia,
Participar, com os homens presos em grilhão,
Da mais ensurdecedora e fremente orgia!