sábado, 12 de junho de 2010

O Suicídio



O Suicídio


Despi a máquina.

Retirei as amarras:

Cabeças de parafusos e veias de cobre.


Atrás do que? Atrás do HD.


O momento estampado em pixel

Não passa de engenharia

E a minha memória perdida

é componente de informática.


Ah, os meus dezesseis!

Foram-se em pedaços

Literalmente...

Frágeis...


Cacos.

Impressiona-me

A materialização de sua destruição,

Quando eram,

Em existência, virtuais.


Aqui jaz Baltasar,

Fiel computador de mesa.

- Quantas vezes já não jantamos juntos?


Sua morte leva um pedaço de mim.

Pois esqueci.

E as memórias...

Eram peças da Santa Efigênia.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

d'Ela


Ela
que é parte de mim
que é o ciclo da vida
que é a noite sem fim.
Que é a insônia acordada.
que é o costume em viver
que é o relento na estrada
que é o frio da cama a esvanecer.
que é a filha, mulher e minha mãe

E mãe, meu caro, mãe não tem rima.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A primeira récita de Segunda

Não se espera que as coisas de final de semana aconteçam logo na Segunda. Em São Paulo, se fosse Sexta, ou até Quinta, tudo bem. Mas Segunda é um dia aculturado, mecanizado.

Segunda passada, porém, deparei-me com uma récita na Praça Roosevelt. Era a semana de aniversário da loja de história em quadrinhos de mais renome da cidade, quiçá do país. Eles tinham organizado alguns eventos para a comemoração. Mesmo assim, segunda-feira...?

Quem conhece a Praça Roosevelt, sabe que por ali passam os jovens alternativos da cidade. Entretanto, as figuras que vi naquela noite destoavam do público comum. De longe, até parecia ser um grupo enlutado pela morte de um conhecido, de tão velhos que eram. Mas, aproximando-se, notar-se-ia que estavam radiantes. Compunham uma roda de récita.

Uma récita formada por velhos ou uma récita de segunda-feira - aquela que não aparece ninguém, só zumbis desacreditados, eventualmente? Quis checar.

O primeiro a entoar era um senhor de barba amarela e sandálias gastas. Falava baixo e com a rouquidão dos anos, mas era disposto, e tinha olhar. Seu Castelo - como soube depois - recitou um par de poemas bem estruturados, daqueles de conteúdo que valha a pena e ritmo adequado. Como ele, outros colegas talentosos continuaram. E tudo isso para a minha surpresa de menina convencida.

Envergonhei-me. Lá estava um homem, velho, sim, com a sua catarata, que falava de amor e de liberdade com muito mais propriedade que eu. Ele sentia, pois para escrevinhar é preciso sentir. Sentia profundo, de um modo que eu, superficial que sou no mundo, não posso mergulhar.

Abandono desde já minhas classificações dos dias de semana. Há outros assuntos para se tratar. 

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

(auto)Análise Social


Aula de Sociologia.

O professor, jogado na cadeira e com o queixo apoiado na mão, sussurrava para as paredes pelo microfone.

Os alunos se ocupavam com diversas atividades: comentários sobre a última festa, leitura de textos de outras matérias, desenhos, sonhos com os olhos abertos... Eu mesma não era exceção: escrevia um pedaço de poesia. Em meio à impaciência de não encontrar a palavra perfeita, permiti-me ouvir o que aquela face escondida por detrás dos cabelos oleosos tinha a dizer.

O tema era suicídio, o fato e o livro de Emilè Durkheim. Capitei o catedrático da cadeira de Sociologia no momento em que relatava os suicídios ocorridos quando um cometa passou perto do planeta. Os falecidos daquele dia fatídico acreditavam que seriam levados pelo cometa para outro lugar.

A declaração do professor prendeu minha atenção de uma maneira peculiar: eu deveria ouvi-la.

- É aquela crença de quem, em algum lugar, há uma vida diferente – ou melhor- que esta...

Seu olhar perdeu-se na sala. Suas rugas pareceram-me mais cansadas, seu terno, ainda mais velho. Tive pena daquele ser humano. Soube, naquele instante, que ele já quisera se matar. Diferentemente de muitos cientistas sociais, ele sabia do que estava falando.

 

 

Esse texto tem algumas mentiras, mas muitas verdades. Sendo assim, decidi pela tag "vida".

segunda-feira, 28 de julho de 2008

“And now, for something completely different”¹



Quarta. Por deus, quem comemora o aniversário na quarta-feira? Não numa cidade grande, onde todos trabalham e estão presos no trânsito e nas suas correntes de deveres diários.

Minha mãe se aproveitou da situação marcando a janta logo hoje. Aposentada, cantarola ao ritmo da colher de pau. Panelas ao fogo às quatro da tarde... Ah! Ser aposentada tem suas vantagens, ô se tem!

Ela sorri para mim e seu pé-de-galinha é pressionado. Sim, prefiro estar aqui devido à folga no trabalho. Também tem desvantagens em ser aposentada: é necessário ser velha, na maioria dos casos.

Meu irmão telefona avisando que a Jane vai se atrasar, mas que virá. Minha mãe, muito fina: “Ah, vá à merda. É hoje que faço 70, e é hoje que farei a reunião. Vem quem quer. Quem não quiser, que não venha.”. Ela diz isso como se “merda” conotasse sinceridade. Mas ela sabe, eu sei que sabe, que família também cria deveres, e que, por mais que todos tenham compromissos, agradar a mãe ou a sogra também é um compromisso. Só mais outro grilhão cotidiano...

“Ele disse que a Jane vem...”, ela comenta, após desligar, como quem não quer nada. “Toma, experimenta”. Eu pergunto o que é. Sei que ela não vai dizer. Ela nunca fala sobre sua comida até que esta tenha passado pela língua de todos os presentes. Era um creme bege; provei.

ALHO. Mãe, patê de alho e você me dá uma colher de sopa inteira para comer, e puro? Quero ver esse gosto horrível sair da minha garganta.

Ela me sorri da sua maneira irresistível: um sorriso carregado de sabedoria, com uma pitada de ingenuidade... ou talvez a ingênua seja eu: se trata de descaso.

Toda vez que ela sorri para mim, minha mente é tomada pela idéia de que, se ela não se importa, por que eu deveria? Por isso que começo a pensar que faz sentido os vampiros serem repelidos por alho. Afinal, são criaturas que vivem para delicados prazeres, só. Aliás, não vivem, existem...

Quem vive é essa viúva aqui na minha frente, que cozinha tendo como base uma receita que não segue. Vida: algo totalmente diferente.

¹ frase tirada de Monthy Phyton Flying Circus.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

João Botas-de-cemitério


João botas-de-cemitério é o meu marido. Eu o amo tanto. Amo a maneira como suas sobrancelhas se ajuntam quando ele está perplexo, ou como suas mãos fortes seguram a pá, fazendo seus bíceps saltarem. Sinto carinho por ele quando se lava, esfregando desajeitadamente suas pernas sujas de terra, quase não cabendo no nosso box. Amo também quando corre olhando para baixo, voltando para casa para assistir à partida de futebol. Admiro-o pela sua força de vontade de sair da cama que eu esquento para ir trabalhar logo pela matina. Mas, nessa hora, a verdade é que sinto um alívio. É verdade que eu o amo, mas quando ele chega perto, eu sinto cheiro de morto. Depois passa, mas aí, quando eu o abraço, imagino se ele antes não agarrou um defunto para o colocar no caixão. E pior: quando transamos, eu imagino se ele não se sente atraído pelas mulheres mortas que acaba vendo peladas. Será que ele não as imagina? Acho que ele me ama, sim. Não tem mais ninguém além de mim. Mas às vezes penso que ele me quer como as defuntas: quieta e subordinada.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Camenae


Por que é tão difícil escrever sobre mim mesma? Até quando vou falar do que eu sinto, crio personagens, diversos de mim, e no desfecho lhes dou um final que não será o meu.

Eu os mato, eu faço ironia com a situação deles... Mas não é como se me debochasse, porque me sinto fora, fora da história. Fora de estórias.

O que está em jogo não é o fato de eu ser ou não escarnecida pelos meus finais. Mas é de eu ter um final, e assim, conseqüentemente, um começo. Tenho, porém, dificuldade de traçar essas linhas, esses horizontes.

Quando foi que eu comecei? Lembro de mim eternamente, não me recordo de quando apareci. Por mais que digam que nasci abrindo a primavera chuvosa de ’90, para mim eu nunca nasci. Desde quando meus olhos puderam ver, minhas mãos tomaram coordenação e eu tomei consciência de mim mesma, eu já estava lá.

Eu não me lembro de ter nascido. Não me lembro da placenta, nem de ser semente, nem de nada ser. Eu me lembro de ser sempre, sempre estar aqui, comigo.

[sussurro] Eu sou eterna.

E eu sou mais eterna porque não estarei presente no momento da minha morte. Dizem que isso não é possível? Pois bem, eu não estarei presente no momento da minha morte!

Posso até vir a sofrer de doença, de velhice, de acidente, de homicídio. Mas, se alguém disse “Ela morreu!”, eu não estarei lá... Não mais! Eu estarei morta.

Eu não presenciarei o momento da minha morte simplesmente porque serei a atriz principal. Para isso, eu precisarei morrer, e deixar de estar presente... Para os outros.

Porém, para mim, eu sempre estarei aqui, porque meus sentidos nunca saberão o que é a minha ausência.

Eu sou eterna.