segunda-feira, 28 de julho de 2008

“And now, for something completely different”¹



Quarta. Por deus, quem comemora o aniversário na quarta-feira? Não numa cidade grande, onde todos trabalham e estão presos no trânsito e nas suas correntes de deveres diários.

Minha mãe se aproveitou da situação marcando a janta logo hoje. Aposentada, cantarola ao ritmo da colher de pau. Panelas ao fogo às quatro da tarde... Ah! Ser aposentada tem suas vantagens, ô se tem!

Ela sorri para mim e seu pé-de-galinha é pressionado. Sim, prefiro estar aqui devido à folga no trabalho. Também tem desvantagens em ser aposentada: é necessário ser velha, na maioria dos casos.

Meu irmão telefona avisando que a Jane vai se atrasar, mas que virá. Minha mãe, muito fina: “Ah, vá à merda. É hoje que faço 70, e é hoje que farei a reunião. Vem quem quer. Quem não quiser, que não venha.”. Ela diz isso como se “merda” conotasse sinceridade. Mas ela sabe, eu sei que sabe, que família também cria deveres, e que, por mais que todos tenham compromissos, agradar a mãe ou a sogra também é um compromisso. Só mais outro grilhão cotidiano...

“Ele disse que a Jane vem...”, ela comenta, após desligar, como quem não quer nada. “Toma, experimenta”. Eu pergunto o que é. Sei que ela não vai dizer. Ela nunca fala sobre sua comida até que esta tenha passado pela língua de todos os presentes. Era um creme bege; provei.

ALHO. Mãe, patê de alho e você me dá uma colher de sopa inteira para comer, e puro? Quero ver esse gosto horrível sair da minha garganta.

Ela me sorri da sua maneira irresistível: um sorriso carregado de sabedoria, com uma pitada de ingenuidade... ou talvez a ingênua seja eu: se trata de descaso.

Toda vez que ela sorri para mim, minha mente é tomada pela idéia de que, se ela não se importa, por que eu deveria? Por isso que começo a pensar que faz sentido os vampiros serem repelidos por alho. Afinal, são criaturas que vivem para delicados prazeres, só. Aliás, não vivem, existem...

Quem vive é essa viúva aqui na minha frente, que cozinha tendo como base uma receita que não segue. Vida: algo totalmente diferente.

¹ frase tirada de Monthy Phyton Flying Circus.

4 comentários:

Michael disse...

Ei! Acho que conheço essa história!
Já falei que você escreve bem e devo repetir! Você realmente escreve!
Adorei! ;)

Anônimo disse...

Ainda estou no quilômetro 54 e só depois de aposentar descobri esse descompromisso com as horas. Isso é metade de minha felicidade, acredite!
Felicidades para sua mamãe, que sabe usar as receitas conforme dita o coração e mandar à merda na hora certa!
Que maravilha quebrar a rotina da semana com um jantar reunindo uma turminha animada.Isso é ter juventude, menina!
Abraços

Anônimo disse...

Gostei muito, Isa!

Você foi incisiva a um dos pontos que, pra mim, resumem a sociedade contemporânea: "os grilhões cotidianos". E não há exemplo maior da rotina que uma quarta-feira, contrastando com a simplicidade da vida de uma aposentada... Nisso, há outra citação pythoniana que cairia muito bem no teu texto: "Always look on the bright side of life..."

Enfim, acho que o conto está muito bom porque não há nada nele que "sobre". Um conto é, por natureza, sintético, e cada parágrafo, cada frase, cada adjetivo tem de ter uma razão muito forte pra estar escrito. E eu vejo essa força bem definida no seu texto.

Um beijo,
Prince

ex-amnésico disse...

Não sei o que dizer: sua mãe te surpreende com patê de alho, a minha com bilhetes enigmáticos pela manhã.

Quem há de entender esses mistérios ambulantes?