quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Cuca

Num sábado comum, num almoço em família nada peculiar, eu me senti superior a uma pessoa.

Estava lendo, naquela época, um livro, “O menino do pijama listrado”, de John Boyne, que narra a amizade de um filho de oficial nazista comum judeu de um campo de concentração sob a ótica do primeiro. Impulsionada pela lembrança de Hitler, analisei criticamente o meu sentimento.

Hitler acreditava na existência de uma raça superior e, por conseqüência, em outras, inferiores. Nisso eu me salvei de autocrítica, por acreditar que a importância da descendência para a formação de um ser pensante é ínfima. Com isso, não nego os genes, mas valorizo muito mais a cultura, a criação e os fatos vividos na constituição de uma pessoa.

Porém, Hitler se colocava como o superior. Isso, apesar de por razões diferentes, eu também fiz naquele dia.

A conversa do almoço rumara para o incidente do furto dos quadros no Museu de Arte de São Paulo. De repente, deparei-me com minha tia dissertando, com palavras rudes e com o nariz em pé (só faltando o dedo em riste, subentendido), sobre os quadros que ela julgava horríveis. Disse que não entendia como poderiam coisas tão feias e inúteis ter valor tão alto. Também não compreendia como tantas pessoas poderiam valorizá-las. Foi aí que, boquiaberta, eu a coloquei, inconscientemente, num degrau abaixo do meu.

O que contra-argumentei depois dessa declaração me pareceu tão óbvio que me sentia infantil ao dizê-lo. Falei que arte não tinha mesmo um objetivo além do de ser arte, e isso permitia maior liberdade de expressão ao artista, para criar (e aqui, fecha-se o triângulo de causas e conseqüências) arte. Falei que a beleza é um valor subjetivo que, além de variar de pessoa para pessoa, também varia na história. Citei também o fato de artistas serem consagrados, muitas vezes, pela coletânea de suas obras, e não por apenas uma delas - mas é claro que cada pedaço participa do seu todo. Comentei sobre a regra básica da economia, a lei da oferta e procura.

Refletindo melhor, e com certa distância da cena, vejo que me senti superior por ter como bagagem algumas reflexões sobre coisas cotidianas. Não que estejam certas ou erradas, ou prontas para se vender por aí, mas elas foram construídas com uma base racional, e não uma base subjetiva de impulsos opinativos e instintivos.

Acho que não consigo não me sentir superior por usar o que me faz humana: a minha cabeça.

Pessoas com problemas mentais dão, muitas vezes, o seu melhor para poderem se comunicar com palavras e fazerem silogismos categóricos. Mas minha tia preferiu tomar um café e esquecer a discussão, dando férias aos neurônios e tchau ao seu potencial.

Foi então que saí da mesa de um sábado comum.

3 comentários:

Anônimo disse...

Falsos silogismos à parte, trago outro determinante de conceito de arte à discussão.
Quando um ser qualquer, que se denomina crítico, elege ou condena algum outro humano, com vistas a colocá-lo na pauta de lucro ou não, sempre me pergunto o que é a arte.
Muito importante ao definir arte talvez seja afastar dela os modismos, tão passageiros, felizmente!
Já a beleza...bem isso é outro assunto, não é Bela?
Sua tia talvez tenha julgado pelo que os olhos dela definem como beleza e não arte.
Bom fim de semana.

000000 disse...

Realmente é difícil dizer ao certo o que é arte. Lembro de um artista que fez uma exposição usando cadáveres humanos, e na capa duma revista estava escrito, "Isto é Arte?".

Alguns dizem que sim, porque ele ousou fazer algo novo, inovou, mesmo que tenha mergulhado nas regiões abissais do grotesco. Outros simplesmente dizem, "Arrggghhhh".

Uma vez um dos meus primos sugeriu uma idéia de como nos tornarmos artistas, depois que ele teve uma visão no banheiro, e disse, "nossa, parece o símbolo do super-homem". Registraríamos em fotos digitais durante um ano as formas mais inusitadas de nossos dejetos, e depois montaríamos uma exposição. Mas a idéia não foi para frente.

Já ouviu falar de um artista que faz obras de arte com alimentos? Pois bem, tínhamos uma idéia bastante original, não acha? Mas acho que eu não gostaria de ser lembrado como o cara que fez um troço que parecia a estátua da liberdade.

E concordo com você, é difícil escrever sobre sentimentos sem colocar um pouco dos seus próprios, nem que seja um verniz para dar um certo lustre pessoal.

ex-amnésico disse...

Como diria Daria Morgendorffer, "meu problema não é baixa estima por mim, mas sim pelos outros".

Veja você: seu comentário, mesmo sendo "infantil" como você disse, foi necessário na ocasião. Talvez, ao invés de etnias ou indivíduos inferiores, haja comportamentos inferiorizantes. Consequentemente, alguém tem de ficar por cima...

Resumindo: todo mundo tem direito a ter uma opinião, desde que saiba que essa é uma categoria menor de raciocínio.