quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Um conto de Natal


Como Bonifácio odiava o Natal. Toda uma utopia enfeitada de luzinhas sugadoras de eletricidade, de coníferas importadas de países nórdicos. Pura hipocrisia.

O chefe que o tratava como um verme durante o ano todo tinha a cara de pau de dar, nessa época, aquele típico tapinha nas costas, entregando o vinho barato e a cesta que estava na promoção no Carrefour, duas quadras para lá da firma. O pior: saber que não tinha dinheiro para comprar aquilo para si. Se não fosse pelo patrão, nem ceia teria. Isso o enraivecia mais ainda.

No dia 23, chegou tarde do trabalho e ainda se deparou com um sorriso do porteiro, perguntando se receberia uma contribuição. Xingou-o, porém jogou algumas notas na guarita, que caíram no chão e não foram pegas antes dele sumir pelo corredor, preferindo as escadas ao elevador. Mais difícil encontrar alguém pelas escadas...

Respirou fundo ao entrar no apartamento de dois cômodos. Finalmente paz e solidão! Alargou a gravata surrada, de listras bregas; jogou a pasta no chão e acendeu um cigarro. Estava abrindo a janela para não empestear a casa com fumaça, porém fechou-a com um baque. O vizinho pianista deixava “jingle bells, jingle bells...” ressonarem até seu reduto.

O aconchego que sua casa lhe dera há um minuto atrás sumira. Estava paranóico. Precisava fazer com que aqueles dias de Natal se transformassem em dias comuns.

A tarefa seria muito mais difícil sem repetitivo trabalho cotidiano. A única alternativa seria imaginar que 24 e 25 de dezembro eram como finais de semana. Abriu o armário de bebidas e ligou para sua prostituta favorita. Duas horas depois e ela tocou a campainha.

Bonifácio morreu naquele dia, de parada cardíaca. Era fumante, com início de alcoolismo e conhecido por seus nervosismos de fim de ano. Se sua mãe estivesse viva, amenizaria a perplexidade das pessoas perante essa estranheza contando que ele fora molestado pelo “Papai Noel” do shopping. Até o dia do falecimento, ela lamentava por tê-lo obrigado a sentar-se no colo do “bom” velhinho todo ano.

A ambulância, ao atender ao chamado daquela noite, deparou-se com um corpo no chão e uma moça chorando, assustada. Ela, que vestia uma saia e um top muito curtos, ambos vermelhos e com pelugem branca, como o gorro, relatou que o morto pôs a mão no peito e caiu assim que abriu a porta. Seus clientes costumavam gostar daquela roupa naquele período do ano...

Bonifácio fora, pelo jeito, uma exceção.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom!
Tem fantasia que mata!
Abraços.

000000 disse...

Será que ele ficou chocado? Ou ficou decepcionado? Ali estava a oportunidade perfeita para ele se vingar do papai noel, dando um devido trato na "mamãe noel". Ou seria ninfeta noel?

E é por isso que eu prefiro não esquentar com certas coisas do que ferver até evaporar por completo. Ou ainda, para aqueles que não conseguem deixar de se esquentar com certas coisas, "apitem de vez em quando, feito a chaleira que o faz para não explodir".

Ficou engraçado, pena que ele morreu tão rápido. Coitado.

Rui Caetano disse...

Bonito sim senhor, gostei.

ex-amnésico disse...

Fantástico! Belo conto, e belo blog, também. Visitarei sempre.

Gostei de suas opiniões sobre o texto do bom combate, especialmente o que disse sobre matar os sonhos realizando-os; sempre tive essa mesma impressão, razão pela qual os meus sonhos continuam confortavelmente sendo "apenas" sonhos...

Um beijo e um feliz ano novo pra você.