domingo, 20 de janeiro de 2008

Chuá

O chuveiro era um barulho estridente, em contraste com o silêncio que rompia.

Hoje, nada de rock anos 70 como música-tema para o banho. Ela escolhera quebrar tal rotina, e agora estranhava. Inspirou profundamente, não como reflexo da água fria que batia em seus ombros, mas para certificar-se de que o som da ducha não era tão poderoso. Não mais que ela.

Pois ela era a rainha daquele reino banheiro. Uma rainha sem súditos, mas com muitos serventes. Desde o batom vermelho escarlate até a bucha vegetal que pressionava violentamente contra a pele.

Era a protagonista naquele palco banheiro. Suas peças eram de um maniqueísmo bizarro e claramente territorial. A boa personagem aparecia na região da pia, quando ela se maquiava defronte o espelho, ou passava cremes em suas coxas de heroína, exercitadas que eram. Quanto à personagem má, esta surgia na privada – trono da rainha malévola – atuando em cenas de vômito, por excesso de bebida ou momentos pré-aborto, ou em monólogos trágicos, em que ela se sentava na tampa do vaso e batia com força a cabeça na descarga, soluçando.

Mas aquele seria um dia especial. Faria um papel improvisado, inédito.

Enquanto se lavava, tropeçou no piso solto, cortando o pé. A cabeça encontrou a beirada do vaso sanitário e o casamento foi instantâneo: não é que a cabeça estava perdendo a virgindade!

Ela era a finada daquele caixão banheiro.

3 comentários:

Anônimo disse...

Melhor não tomar banho de salto alto, né?
Sabe o que se diz: metade das mortes domésticas acontecem ...no banheiro.

Um conto que levou a um final inesperado. Desses que eu gosto, mas não sei criar.
=^.^=

000000 disse...

Gostei do final, ficou dramático e cômico.

O crânio dela perdeu a virgindade, depois de casar-se com a privada, e ela morreu durante o parto de sua consciência, ou melhor, o parto de seus miolos.

marimari disse...

Surto de originalidade: a personagem acaba não cantando no chuveiro! Surpreende-me Isa!