domingo, 20 de janeiro de 2008

Chuá

O chuveiro era um barulho estridente, em contraste com o silêncio que rompia.

Hoje, nada de rock anos 70 como música-tema para o banho. Ela escolhera quebrar tal rotina, e agora estranhava. Inspirou profundamente, não como reflexo da água fria que batia em seus ombros, mas para certificar-se de que o som da ducha não era tão poderoso. Não mais que ela.

Pois ela era a rainha daquele reino banheiro. Uma rainha sem súditos, mas com muitos serventes. Desde o batom vermelho escarlate até a bucha vegetal que pressionava violentamente contra a pele.

Era a protagonista naquele palco banheiro. Suas peças eram de um maniqueísmo bizarro e claramente territorial. A boa personagem aparecia na região da pia, quando ela se maquiava defronte o espelho, ou passava cremes em suas coxas de heroína, exercitadas que eram. Quanto à personagem má, esta surgia na privada – trono da rainha malévola – atuando em cenas de vômito, por excesso de bebida ou momentos pré-aborto, ou em monólogos trágicos, em que ela se sentava na tampa do vaso e batia com força a cabeça na descarga, soluçando.

Mas aquele seria um dia especial. Faria um papel improvisado, inédito.

Enquanto se lavava, tropeçou no piso solto, cortando o pé. A cabeça encontrou a beirada do vaso sanitário e o casamento foi instantâneo: não é que a cabeça estava perdendo a virgindade!

Ela era a finada daquele caixão banheiro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Cuca

Num sábado comum, num almoço em família nada peculiar, eu me senti superior a uma pessoa.

Estava lendo, naquela época, um livro, “O menino do pijama listrado”, de John Boyne, que narra a amizade de um filho de oficial nazista comum judeu de um campo de concentração sob a ótica do primeiro. Impulsionada pela lembrança de Hitler, analisei criticamente o meu sentimento.

Hitler acreditava na existência de uma raça superior e, por conseqüência, em outras, inferiores. Nisso eu me salvei de autocrítica, por acreditar que a importância da descendência para a formação de um ser pensante é ínfima. Com isso, não nego os genes, mas valorizo muito mais a cultura, a criação e os fatos vividos na constituição de uma pessoa.

Porém, Hitler se colocava como o superior. Isso, apesar de por razões diferentes, eu também fiz naquele dia.

A conversa do almoço rumara para o incidente do furto dos quadros no Museu de Arte de São Paulo. De repente, deparei-me com minha tia dissertando, com palavras rudes e com o nariz em pé (só faltando o dedo em riste, subentendido), sobre os quadros que ela julgava horríveis. Disse que não entendia como poderiam coisas tão feias e inúteis ter valor tão alto. Também não compreendia como tantas pessoas poderiam valorizá-las. Foi aí que, boquiaberta, eu a coloquei, inconscientemente, num degrau abaixo do meu.

O que contra-argumentei depois dessa declaração me pareceu tão óbvio que me sentia infantil ao dizê-lo. Falei que arte não tinha mesmo um objetivo além do de ser arte, e isso permitia maior liberdade de expressão ao artista, para criar (e aqui, fecha-se o triângulo de causas e conseqüências) arte. Falei que a beleza é um valor subjetivo que, além de variar de pessoa para pessoa, também varia na história. Citei também o fato de artistas serem consagrados, muitas vezes, pela coletânea de suas obras, e não por apenas uma delas - mas é claro que cada pedaço participa do seu todo. Comentei sobre a regra básica da economia, a lei da oferta e procura.

Refletindo melhor, e com certa distância da cena, vejo que me senti superior por ter como bagagem algumas reflexões sobre coisas cotidianas. Não que estejam certas ou erradas, ou prontas para se vender por aí, mas elas foram construídas com uma base racional, e não uma base subjetiva de impulsos opinativos e instintivos.

Acho que não consigo não me sentir superior por usar o que me faz humana: a minha cabeça.

Pessoas com problemas mentais dão, muitas vezes, o seu melhor para poderem se comunicar com palavras e fazerem silogismos categóricos. Mas minha tia preferiu tomar um café e esquecer a discussão, dando férias aos neurônios e tchau ao seu potencial.

Foi então que saí da mesa de um sábado comum.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Valor


De que valem todas as horas abraçadas ao telefone, se ele só tocou quando eu estava em sono profundo?
De que vale o sacrifício suado dentro do ônibus, se o motor enguiçou e não cheguei a tempo?
Qual o valor de todas as checadas de e-mail, se não chegou um sequer?
E as cartas... Todas as cartas escritas e extraviadas, e jogadas no lixo ou torradas em brasa de raiva...
O presente que embrulhei com carinho e ficou no meu armário...
As surpresas que sonhei, com nenhum intuito além do natural, puro e sincero surpreender...
As flores que pensei em plantar, para colher em dias especiais...

Nada. Não passaram de utopia, de improbabilidade...

Mas não para mim. O que me fortaleceu foram os meus desejos. Eles me dão a certeza de que tenho certeza do que quero, de que o que eu planejo tem sentido e fim, apesar de muitas vezes o mundo, e você - que é meu ponto final - dizerem o contrário.


(a raiva que às vezes tenho do meu namorado é muito inspiradora. Mas ela é passageira, pois eu o amo tanto :3

Sobre as fotos, a maioria é de minha autoria. São exceções as que acompanham os post "Mudança de Nome" e "Vaidade de Ed". )

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Um conto de Natal


Como Bonifácio odiava o Natal. Toda uma utopia enfeitada de luzinhas sugadoras de eletricidade, de coníferas importadas de países nórdicos. Pura hipocrisia.

O chefe que o tratava como um verme durante o ano todo tinha a cara de pau de dar, nessa época, aquele típico tapinha nas costas, entregando o vinho barato e a cesta que estava na promoção no Carrefour, duas quadras para lá da firma. O pior: saber que não tinha dinheiro para comprar aquilo para si. Se não fosse pelo patrão, nem ceia teria. Isso o enraivecia mais ainda.

No dia 23, chegou tarde do trabalho e ainda se deparou com um sorriso do porteiro, perguntando se receberia uma contribuição. Xingou-o, porém jogou algumas notas na guarita, que caíram no chão e não foram pegas antes dele sumir pelo corredor, preferindo as escadas ao elevador. Mais difícil encontrar alguém pelas escadas...

Respirou fundo ao entrar no apartamento de dois cômodos. Finalmente paz e solidão! Alargou a gravata surrada, de listras bregas; jogou a pasta no chão e acendeu um cigarro. Estava abrindo a janela para não empestear a casa com fumaça, porém fechou-a com um baque. O vizinho pianista deixava “jingle bells, jingle bells...” ressonarem até seu reduto.

O aconchego que sua casa lhe dera há um minuto atrás sumira. Estava paranóico. Precisava fazer com que aqueles dias de Natal se transformassem em dias comuns.

A tarefa seria muito mais difícil sem repetitivo trabalho cotidiano. A única alternativa seria imaginar que 24 e 25 de dezembro eram como finais de semana. Abriu o armário de bebidas e ligou para sua prostituta favorita. Duas horas depois e ela tocou a campainha.

Bonifácio morreu naquele dia, de parada cardíaca. Era fumante, com início de alcoolismo e conhecido por seus nervosismos de fim de ano. Se sua mãe estivesse viva, amenizaria a perplexidade das pessoas perante essa estranheza contando que ele fora molestado pelo “Papai Noel” do shopping. Até o dia do falecimento, ela lamentava por tê-lo obrigado a sentar-se no colo do “bom” velhinho todo ano.

A ambulância, ao atender ao chamado daquela noite, deparou-se com um corpo no chão e uma moça chorando, assustada. Ela, que vestia uma saia e um top muito curtos, ambos vermelhos e com pelugem branca, como o gorro, relatou que o morto pôs a mão no peito e caiu assim que abriu a porta. Seus clientes costumavam gostar daquela roupa naquele período do ano...

Bonifácio fora, pelo jeito, uma exceção.